Para qual seleção nacional nos viramos para uma dose de singularidade? A Portuguesa obviamente. Desde há uns anos, compositores são convidados para não participarem com um tema tipicamente “eurovisivo”. Durante o Festival da Canção 2020 sobressaiu, além da vencedora, sobretudo um participante muito especial. Um cantor com uma coroa e um trono.

Ups
O seu nome: Filipe Sambado. Elogiado nos circuitos musicais alternativos pelo seu segundo álbum “Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo” (2018). Numa festa no outono de 2019, Filipe é interpelado por alguém que lhe pergunta “Já foste contactado pela RTP?”. Ups. Filipe ainda não foi contactado. Mas percebe que se trata do Festival da Canção – e tenciona recusar, caso seja de facto contactado.

Doze pontos
O telefonema chega, resumindo a história: Filipe aceita o convite. Tem o seu novo álbum quase pronto e compõe rapidamente mais um tema, Gerbera amarela do Sul. Envia este tema, o qual não é considerado como favorito por quem quer que seja, mas passa facilmente a primeira semifinal e na final obtém o primeiro lugar do júri – e o terceiro lugar na classificação final.

O que vemos
Isso não tem nada que ver com a maneira como ele aborda a sua atuação. O que vemos nós? Um close-up de um homem, maquilhagem brilhante, ele olha para nós por entre os seus dedos, dedos com verniz madrepérola, nas suas orelham estão pingentes de vidro, e sim, ele tem uma coroa. E está sentado num trono. Usa uma capa longa e imponente. A meio levanta-se, deixa a capa no trono e usa uma saia em latex. À sua volta: cinco vocalistas em longos e negros vestidos, chapéus imponentes com véus à frente. Não vemos nem os seus olhos nem as suas bocas.

O que ouvimos
A canção tem algo circular. E algo sagrado também. A letra não é inequívoca. Sambado usa uma linguagem visual variada, na qual várias metáforas se escondem e nem todas compreensíveis. Mas, como ele próprio diz: ‘Se cada frase for entendida pelo significado das palavras, as imagens criadas, são muito explicativas.’
Ah.

Inspiração
Uma tentativa. À pergunta sobre o que inspirou Filipe ao escrever a letra, responde com esta enumeração:
“O convite,
Conan Osíris (o – igualmente singular – participante Português de 2019, muito criticado após não ser qualificado para a final),
o bairro da Jamaica,
a Avenida da Liberdade,
a Cláudia Semedo,
o ódio na internet,
os preconceitos, a ignorância e muito mais.’

Imagens
A letra é rica em imagens e jogos de palavras. Sambado começa com ‘Já fede a tese aristocrática, Com tão pouca matemática, E ciência de opinião’. Crítica aos que estão no poder que sem provas fazem afirmações falsas ou ridículas.
E continua ‘Mais eucalipto que pinheiro’. Explicação: os eucaliptos erodem a terra e desertificam o solo, os pinheiros o contrário.
E depois a gerbera amarela. Amarelo parece significar cíume ou inveja e Sambado escolheu a gerbera, porque é uma planta que facilmente se adapta e germina. A letra aqui parece ser uma ode às gentes do sul, pessoas que facilmente se adaptam (ou têm de se adaptar), mas os quais são invejados por outros.

Ó tio
A canção abunda em jogos de palavras e o que mais realça aparece no refrão, aí rima “consulado” com “consolado”. Sambado canta: ‘Consulado pra mim, Consulado pra ti, Consulado pro tio’  e depois ‘Ó tio, ’tou tão consolado’.
A palavra “tio” é frequentemente utilizada para referenciar parasitas mimados, que vivem de contactos e de lamber botas. Aqui parece que Sambado se refere a suspeitas de nepotismo nas muitas ligações familiares no governo Português.
No total parece que Gerbera amarela do sul deve ser compreendida como um apelo contra julgamentos simplistas de uma posição privilegiada.

Rotina
Talvez daí o trono no palco, a coroa e as “tias” nos vestidos negros e chapéus imponentes com véus? Sambado diz: “Trabalhar numa canção ajuda-me a ter pontos de vista sobre diversos assuntos, escrevo sobre isso e por isso reflito sobre os assuntos”.
Mas as suas canções não são sempre críticas à sociedade. No seu novo álbum Revezo, encontra-se frequentemente a vida doméstica, inspirada na vida de Sambado com a sua companheira, um assunto cantado em Jóia da rotina, onde vemos o cantor numa espécie de aparição de Frida-Kahlo.

Consul
Mas também em canções “domésticas”, há espaço para investigação: o que significa família, o que significa sexualidade, o que significa responsabilidade. Filipe Sambado é, tal como Conan Osíris, um artista que persegue a tradição e a modernização, que mistura a música popular com o folclore e o avant-garde, que tanto parece homem como mulher, engraçado e sério, soberano e servente.
Num Q&A no Instagram escreveu um fan: “Só quero dizer que és rei”. Sambado respondeu: “Vou ser cônsul em Roterdão?”
Este último não aconteceu. Mas talvez ele nem ache isso muito mau. Uma outra pergunta foi: “Qual vai ser a tua reação se fores o vencedor?” Sambado responde: “ontente. E muito confuso”

P.S. O Matthew de Singapura já é fã.


Tradução: José Tavares